Como seria?

Como todas as pessoas deste mundo, eu também ando assustada com o tal do coronavírus. Muito. E, também como todo o mundo, ando dando tratos à bola e pensando muito sobre tudo. Divagações, pensamentos soltos que me levaram a tentar imaginar como reagiriam a tudo isso, as três pessoas que mais amei nesta vida e que, infelizmente, não estão mais por aqui: minha mãe – Beatriz -, meu pai – Anchieta – e Fred, meu ex-marido, de quem fiquei viúva.
Os três tinham personalidades totalmente distintas. Minha mãe, a pessoa mais doce e equilibrada que conheci na vida, tinha um olhar tranquilo pra absolutamente tudo. Melhor, quase tudo. A saúde dos filhos era o único ponto que tirava Beatriz do eixo. De resto, ela segurava qualquer bomba atômica. Filha de um italiano e de uma argentina, herdou a personalidade forte, o sangue quente da família paterna, com uma firmeza impressionante, que fazia dela o meu porto seguro. Jamais houve colo melhor, e como me faz falta. Talvez por eu ser a caçulinha do papai, de ter sido a rapa do tacho mais desejada, minha mãe sempre foi durona comigo quando me via titubear. Lembro quando a mãe dela, minha avó América, morreu…na missa de sétimo dia, quando olhei pra Beatriz e vi os olhos dela cheios d’água, corri pra lhe dar um abraço. Ela me apertou forte e, olhando nos meus olhos, disse: “Engole o choro”. Imediatamente eu entendi que ela precisava de força, e me ver chorar minava todas as suas forças. Desde então, sempre que eu ameaço desabar, chorar por qualquer razão, lembro dela dizendo o mesmo “Engole o choro”, e sigo em frente, com a força daquele olhar.
Beatriz era médica, se especializou em ginecologia e obstetrícia e, mais tarde, em clínica médica. Meu pai era jornalista e um hipocondríaco divertido. Ambos eram diametralmente opostos. Ela linda, doce, chique, sofisticada, tranquila, falava baixo e tinha sempre algo positivo pra dizer. Ele, nordestino até a raiz dos cabelos que lhe faltaram desde cedo, tinha os traços fortes e o par de olhos azuis mais lindos – que pra meu desespero não herdei – deste planeta. Anchieta era a criatura mais popular que eu conheci, o ‘brother’ dos feirantes da Nossa Senhora da Paz, o conselheiro dos porteiros do prédio e da vizinhança e o “médico” de plantão dos amigos, uma figura. Cozinhava bem demais e tinha prazer em ver a mesa cheia de amigos, amigos dos filhos e da família. Tinha uma paixão avassaladora pela profissão que escolheu: o jornalismo. Formou-se advogado, mas pouco atuou como tal. Meu pai foi diretor de jornalismo da Rádio Nacional em sua época áurea, diretor e colunista de revistas como ‘O Cruzeiro’ e ‘A Cigarra’ e atuou como jurado de programas como Flávio Cavalcanti, entre outras tantas coisas. E foi o melhor pai que eu poderia sonhar em ter. Divertido, parceiro, duro quando devia ser, generoso sempre e quem me ensinou muito do que eu sei. Foi com ele que aprendi a amar o jornalismo, a lutar por aquilo que eu quero e a não desistir jamais. Minha mãe sempre foi contrária ao meu excesso de determinação, mas sentiu orgulho em ver a caçulinha começar a trabalhar aos 14 anos e a ganhar o seu próprio dinheiro. Já meu pai, odiava a ideia de eu trabalhar como modelo tão cedo e adorava a ideia de me ter sempre por perto, de me proteger. Eu não disse que eles eram opostos? Com todas essas diferenças, ficaram casados por 40 anos, quando, aos 64 anos, meu pai morreu, vítima de uma pleurisia – uma inflamação das membranas que revestem os pulmões.
No dia em que meu pai morreu, um 4 de maio de 1992, fui eu quem minha mãe acordou para levá-lo até o hospital. Eu sabia que alguma coisa bem ruim estava acontecendo porque ela escalou ainda minha madrinha e minha tia – ambas irmãs de meu pai – para nos acompanharem. Minha mãe ficou em casa com meu irmão que, aos 36 anos, enfartara na semana anterior. Fui, achando que levaria meu pai e voltaria com ele. Mas voltei sem. Acompanhada por minhas tias e por um anjo que fez parte daquele dia pavoroso, o dr. Alexandre, o médico que o atendeu e, quando soube da situação de meu irmão, fez questão de nos acompanhar para dar a ele a notícia. Depois daquele dia, minha mãe perdeu o brilho no olhar. Pouco mais de dois anos depois, num dia 20 de novembro de 1994, Beatriz morreu, também aos 64 anos de idade, vítima de um câncer de cabeça de pâncreas.
Seis anos depois de perder minha mãe, ganhei o amor da minha vida. Fred chegou num ano que, lembro bem, era o ano que eu e minhas amigas de Notre Dame sempre imaginávamos como seria. Eu tive a sorte de conhecer o homem mais incrível deste mundo. E fui tão feliz com ele que, às vezes, acho até que foi um sonho. Mas não foi, foi a minha melhor realidade. Fred era muito diferente de mim: sério, detestava tomar café da manhã – tomava uma Coca-Cola Zero -, amava carros antigos, falava seis idiomas e era elegantérrimo. Ao mesmo tempo, era divertido, doce, generoso, bom de papo e tinha uma cultura impressionante. Assim como meu pai, amava o jornalismo e era um craque no que fazia. Extremamente discreto, detestava ser fotografado em festas e eventos aos quais era obrigado a ir por assinar uma coluna em alguns dos principais jornais do país, mas depois que passamos a ir juntos, posava sem se queixar. Fred era avesso a médicos. Ia, frequentemente, apenas ao cardiologista por conta de algumas isquemias que teve ao longo da vida, mas era só. Não à toa, o Alzheimer lhe deu uma rasteira e o levou de mim, também aos 64 anos, no dia 30 de dezembro de 2011.
Os três aos 64 anos de idade. Os três cedo demais. E a falta que me fazem? Os três. Sempre, e tanta!
Como estariam os três hoje, em meio a essa pandemia? A médica, o hipocondríaco e o avesso a médicos?
Beatriz, eu não tenho dúvida, estaria debruçada sobre todos os estudos disponíveis sobre o vírus e a doença, teria conversado com os amigos médicos, buscado aconselhamentos e dicas com os colegas. Já estaria com um “kit” sobrevivência pra cada filha, e ligaria diariamente pra saber se estávamos fazendo exatamente aquilo que ela aconselhou. Com o equilíbrio que lhe era tão peculiar, estaria tratando de nos tranquilizar, de afastar qualquer pensamento ruim de nós. Acho que por força do ofício, não se preocuparia tanto com ela, mas bem mais com os outros, como sempre fez. Posso ver minha mãe, aqui, na minha frente, repetindo como um mantra: “Você está na sua casa, protegida, é saudável, é informada, sabe o que tem que fazer, vamos passar por isso também!” Talvez pelo hábito de ser casada com um jornalista – que lia os jornais da primeira à última letra -, minha mãe era a primeira a pegar o jornal, que entregava nas mãos do meu pai. Antes disso, sentava ao lado de cada filho e contava tudo sobre os destaques do jornal do dia…agora, imagina você, às seis da manhã, tonta de sono, tendo que ir pra faculdade, ter uma “âncora” narrando as principais notícias ali do seu ladinho! Hoje eu me pego rindo quando lembro disso, mas na época eu torcia pra ela acabar logo e me deixar no mais absoluto silêncio. Sim, eu detesto conversar quando acordo! Mas não resistia a ela!
Anchieta, tenho certeza, já teria um carregamento de remédios, dúzias de máscaras, quilos de luvas e todo o aparato possível. Teria também distribuído pros amigos, pros feirantes e pros porteiros do prédio. Estaria com todos os jornais em cima da mesa, diariamente, sintonizado nos canais de notícias e de olho nos sites de notícias. E ainda encontraria tempo pra cozinhar as coisas mais gostosas, o prato preferido de cada um. Daria um jeito de sentar na mesa pra “relaxar” e polir a prataria da casa – ele amava fazer isso e fazia como ninguém mais. E ainda estaria de olho em cada um de nós, atento e forte, pronto pra levantar o ânimo de quem acordasse pra baixo.
Fred, ah, Fred! Como eu tenho pensado em você! Em como você reagiria, o que diria, com seu humor rápido e ácido…sim, porque em meio a tudo isso ainda tem um Jair Bolsonaro. E eu me divirto só em imaginar as reações a cada absurdo dito por esse que elegeram presidente de um país já tão combalido e tão amado pelo Fred, que apesar de suíço, amava o Brasil talvez até mais do que qualquer um de nós. E agradeço, cada dia, por ele não passar por isso. Porque eu sei que se rebelaria e não usaria máscara, luva e estaria lá, em frente ao computador, na redação do jornal, atrás de cada notícia que pudesse fazer a diferença, de cada nota que divertisse o leitor, de olho em tudo que rendesse a ele os comentários inteligentes e oportunos que rechearam suas colunas ao longo de sua carreira profissional. Você faz falta…tanta, que nem sei…
Não tenho mais o colo de qualquer um deles pra sentar e esperar essa “tempestade” passar, mas tenho todo o amor que eles me deram e a vida feliz que me proporcionaram pra me encher de ânimo e de coragem pra enfrentar esses dias complicados. E temos esse direito: de chorar, de reclamar, de ter medo, de ter dúvidas, de querer respostas, de ficar ansiosos…a vida não é perfeita, nem nós. Não somos perfis do Facebook, nem stories do Instagram, onde tudo é perfeito e dá tão certo. E, acredite, que sortudos somos por isso! Por lá, as histórias duram apenas 24 horas e tudo é virtual. O real, por menos palpável que ainda seja, está dentro de cada um de nós, fez de nós as pessoas que somos, com virtudes e defeitos. A ideia é evoluir, se tornar melhor, ainda que com muitos tropeços ao longo do caminho.